Conflitos no campo afetaram mais de 105 mil pessoas no AM, em 2024, alta de 41% em relação ao ano anterior

Dados constam no relatório da Comissão da Pastoral da Terra
Conflitos por terra têm aumentado na região Norte (Foto: Divulgação/MST)

O número de pessoas atingidas pelos conflitos no campo cresceu assustadoramente no Amazonas. De acordo com um relatório divulgado, na quarta-feira (23/04), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), baseado em dados coletados em 2024, a violência agrária, no ano passado, alcançou 105.847 pessoas no Estado, alta de quase 41% em relação a 2023, quando 75.056 pessoas foram afetadas pelos conflitos no campo no território amazonense.

Segundo o estudo, ao todo, em 2024, foram registradas 132 ocorrências no Estado, a maior parte da violência é relacionada a disputa pela terra (119 casos), pela água (10) e questões trabalhistas (03).

Conforme o relatório da CPT, os conflitos no campo ocorreram em 36 municípios do Amazonas, incluindo a capital Manaus, onde foram anotados oito casos de violência. Ao todo, 26.539 famílias sofreram com a violência agrária no Estado, em 2024.

No que se refere a disputa por terras, a maioria das vítimas é composta de indígenas (52 casos), posseiros (39), ribeirinhos (14), extrativistas (07), assentados (03), seringueiros (03) e, em menor escala, os pequenos proprietários (01).

Um dos principais focos da violência são as terras indígenas situadas na região da fronteira entre os municípios de São Gabriel da Cachoeira e Japurá, no Alto Rio Negro, onde 7,6 mil famílias foram afetadas pelos conflitos relacionados a posse da terra. Outro alvo de tensão é a terra indígena do Vale do Javari, entre os municípios de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Jutaí e São Paulo de Olivença, onde 1.579 famílias sofrem com as disputas agrárias, segundo o relatório da CPT.

Amacro

Conforme o estudo da CPT, seguindo a tendência nacional, a região conhecido como Amacro (sigla para Amazonas, Acre e Rondônia) e Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) tiveram os números mais altos de conflitos em dez anos.

Na Amacro, a CPT registrou 185 casos, dois a mais que o período anterior, em 2023. No Matopiba, os números são mais expressivos: foram 415 conflitos por terra no ano passado. O recorde anterior era de 253 casos em 2016.

Embora 2024 seja o ano com menor número de assassinatos da última década, 62% dos casos foram registrados nas áreas de expansão do agronegócio, onde os relatos de ameaças são constantes. Dos 13 assassinatos registrados no último ano, oito foram na Amazônia Legal, sendo três no Matopiba e um na Amacro. No relatório, a CPT classifica a Amazônia Legal como área de expansão da pecuária e das plantações de soja, com sobreposição das outras duas fronteiras agrícolas.

“O Matopiba é quase o dobro do tamanho da área da Amacro, tanto em número de quilômetros quadrados quanto de população, municípios, etc. Se tomarmos, no entanto, uma visão proporcional, a agressividade e a violência na Amacro tem maior expressividade”, explica Afonso Chagas, pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e assessor jurídico da CPT.

Modus Operandi

Embora sejam regiões distantes, o modo de agir dos agressores é semelhante. Homens que se intitulam donos da terra chegam de surpresa e bloqueiam vias usadas pelos antigos moradores. Para isso, usam cercas ou jagunços armados. Depois, incendeiam as casas de quem insiste em permanecer na área. Ameaças e agressões não são incomuns. Nos casos extremos, há tortura e assassinatos.

Arte: Brasil de Fato

“Chegaram lá para arrancar nós com jagunço, policial, pegaram as coisas de dentro de casa e jogaram dentro do carro deles”, conta Matias*, agricultor morador do Seringal Entre Rios, no município de Lábrea (a 702 quilômetros de Manaus). “Jogaram lá do outro lado da estrada, deixaram numa casa do vizinho, mais para frente, assim, na lateral da estrada. Estragou todas as coisas”, conta.

No Seringal Entre Rios, a Pastoral registrou quatro conflitos no ano passado, envolvendo cerca de 180 famílias. Matias foi expulso em 2019 e, até hoje, tenta reaver as terras. “Até hoje, nunca foi resolvido nada”, lamenta.

O fazendeiro que tomou a área bloqueou a estrada de acesso à cidade de Boca do Acre (a 950 quilômetros de Manaus) e, ainda hoje, as famílias da região lutam para conseguir desobstruir a passagem. “Estão se batendo até hoje para conseguir abrir o ramal pra entrar pra lá”, conta o agricultor. Ele abandonou a área e buscou abrigo na casa de um familiar.

Pecuária ameaça paz na região

A Amacro é alvo do avanço, principalmente, da pecuária. Na comunidade Irmã Dorothy, em Lábrea, quase 30 extrativistas ocupam a área, onde colhem castanha e açaí. Em maio de 2024, eles trabalhavam na abertura de uma estrada na mata para facilitar a retirada dos produtos e levá-los até a rodovia BR-317, quando foram surpreendidos pelos jagunços armados, a mando de um conhecido fazendeiro da região.

Um homem foi atingido com dois tiros na perna e um na cabeça. Outros três homens foram alvejados pelos disparos. Todos foram socorrido, mas até hoje os extrativistas têm resquícios das balas alojados pelo corpo. “Lá hoje eu não vejo mais uma comunidade Irmã Dorothy, igual nós colocamos o nome. Lá tá mais como uma zona de guerra”, diz o extrativista Mizael Magalhães de Araújo, um dos ocupantes da área.

A comunidade Irmã Dorothy fica na gleba Novo Natal, onde também está localizada a comunidade Marielle Franco. Lá, por dez anos, cerca de 200 famílias conviveram com ameaças, tortura e incêndio das casas, crimes praticados por um pecuarista. Em fevereiro de 2025, o Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu a arrecadação de uma parte da área para a criação do assentamento Marielle Franco. A conclusão do processo representa uma vitória para as famílias da área.

Agora, os ocupantes da comunidade Irmã Dorothy aguardam pela atuação do Incra para que tenham a mesma garantia de alguma segurança jurídica. “A comunidade está em terra pública (…) Vai dar certo, mas não tá fácil, não, para nós lá dentro”, disse Araújo.

As áreas de pastagem na Amacro mais do que dobraram nos últimos 20 anos, segundo dados da plataforma MapBiomas. Em 2003, os pastos ocupavam pouco mais de 3 milhões de hectares. Em 2023, a área destinada à pecuária era de mais de 7,5 milhões de hectares. A soja também marca presença na área, concentrada principalmente na parte norte do estado de Rondônia.

De cerca de um hectare de soja em 2003, a área destinada ao plantio do grão saltou para mais de 72 mil hectares em 2023 na Amacro.

Dados nacionais

O Brasil registrou aumento nos conflitos por terra e por água em 2024, na comparação com o ano anterior, segundo o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O número de conflitos por terra subiu de 1.724 para 1.768, enquanto os conflitos por água aumentaram de 225 para 266.

Os conflitos por terras no Brasil envolveram 904 mil pessoas no ano de 2024. Em 2023, esses conflitos envolveram 792 mil pessoas, o que representa que mais de 100 mil pessoas a mais foram afetadas por esses confrontos no ano passado, quando resultaram em 13 assassinatos.

Esse número foi registrado apesar de ter havido queda no número de conflitos no campo em relação a 2023, ano que teve o maior patamar da série histórica do relatório em 29 anos, com 2.250 conflitos. Já em 2024, houve 2.185 ocorrências desse tipo.

Mulher da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu foi ferida por disparos de arma de fogo  (Foto: Leo Otero/ MPI)
Fazendeiros e PMs são responsáveis por assassinatos

Dos 13 assassinatos registrados pela CPT em 2024, seis foram comandados por fazendeiros, de acordo com o relatório. A indígena Maria de Fátima Muniz Pataxó, a Nega Pataxó, assassinada em janeiro do ano passado, no sul da Bahia, foi uma das vítimas dos ruralistas. A morte de Maria de Fátima foi resultado de uma mobilização do movimento ruralista Invasão Zero, que agiu com apoio das forças do Estado.

De acordo com testemunhas, a Polícia Militar (PM) abriu caminho para a milícia rural atirar contra indígenas – incluindo idosos e crianças, conforme noticiou o Brasil de Fato. Os próprios policiais também teriam efetuado disparos de arma de fogo, de acordo com as testemunhas.

O assassinato de Nega Pataxó não é um caso isolado. Em 31% dos assassinatos no campo em 2024, houve participação de policiais militares, segundo a CPT.

Os indígenas são as principais vítimas da violência extrema. Em 2024, 79% das vítimas de tentativa de assassinato eram indígenas. Dos 13 casos de assassinatos, cinco eram indígenas, três eram sem-terra, dois eram assentados, um quilombola, um posseiro e um pequeno proprietário.

Com informações da Agência Brasil e do site Brasil de Fato