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A luta pela libertação da Palestina passa por um “momento crucial” após 77 anos da Nakba, palavra árabe usada para designar a catástrofe que se abateu sobre os povos originários da região desde 1948 com a implantação do regime colonial sionista de Israel em terras palestinas. A avaliação é do historiador brasileiro e especialista em Relações Internacionais, Sayid Marcos Tenório, 63 anos, uma das grandes referências sobre a Causa Palestina e o Oriente Médio no Brasil.
“O resultado do genocídio na Faixa de Gaza mudará o cenário geopolítico do Oriente Médio”, avalia Sayid Tenório
Nascido em Garanhuns, no Estado de Pernambuco, Sayid Tenório começou a se interessar muito cedo pelos eventos relacionados à Palestina, mas exatamente em 1982, quando tomou conhecimento de uma das maiores carnificinas realizadas na história atual: o massacre de mais de 3 mil pessoas nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, em Beirute, no Líbano. A barbárie foi cometida por Israel, que havia acabado de invadir o território libanês e ocupou a capital do país, com a ajuda de milícias maronitas de extrema-direita.
Desde então, o pernambucano se aprofundou no assunto e não parou mais ao ponto de escrever o livro “Palestina – Do mito da terra prometida à terra da resistência” (Ed. Anita Garibaldi e IBRASPAL, 2ª ed, 2022, 408 pgs). Segundo ele, mais de 5 mil exemplares já foram vendidos.
“Eu sempre me interessei por temas internacionais e internacionalistas. E escrevia sobre a Questão Palestina, sobre o Sahara Ocidental, o Irã, e contra o sionismo. Alguns amigos sugeriram que eu reunisse aqueles artigos num livro. Mas eu preferi desenvolver uma pesquisa mais abrangente e escrever sobre a Palestina, trazendo esse assunto para o leitor brasileiro de todos os níveis, para que pudesse compreender em profundida os eventos políticos e sociais que envolvem a Palestina e a luta de resistência do povo palestino ao longo dos anos”, diz Sayid Tenório em entrevista exclusiva para o Portal Panorama Real.
Tamanho zelo em mostrar a realidade sobre a Palestina tem rendido vários atos de perseguição por parte dos movimentos sionistas no Brasil com o apoio de grupos brasileiros de extrema-direita e parte da mídia hegemônica do país vinculada ao sionismo mundial. O ápice da perseguição resultado em sua exoneração da Câmara dos Deputados, onde trabalhou por muitos anos.
Por conta de seus estudos sobre a Palestina e o mundo árabe, Sayid Tenório acabou se interessando pelo mundo muçulmano e acabou adotando o Islã como fé, tornando-se, também, em referência sobre assuntos islâmicos no Brasil. O historiador escreveu o livro “Imalês: fragmentos da presença de muçulmanos nas revoltas contra escravidão no Brasil” (Appris, 1ª ed, 2022, 142 pgs), que retrata uma revolta popular ocorrida em Salvador, na Bahia, realizada por escravos de fé muçulmana contra o regime de escravidão existente na época.
“O Brasil é um país islamofóbico. Os muçulmanos são os mais difamados e perseguidos, juntamente com nossos irmãos das religiões afro-brasileiras. E isso se intensificou principalmente com o crescimento das seitas pentecostais e neopentecostais, que são aliadas do sionismo”, afirma.
Para falar sobre os 77 anos da “Nakba” e outros temas importantes relacionados ao Oriente Médio, o Portal Panorama Real publica, neste domingo (08/06), uma entrevista com o historiador pernambucano Sayid Tenório, que esteve em Manaus para proferir palestra e fazer o lançamento de seu livro “Palestina: Do mito da terra prometida à terra da resistência”, durante evento realizado, na última sexta-feira (06/06), na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Para saber mais sobre o assunto, confira a entrevista abaixo:
Panorama Real: Quando você começou a se interessar pelo Oriente Médio, de modo geral, e pela Palestina, em particular?
Sayid Tenório: Como militante do movimento estudantil nos anos de 1980, sempre lia sobre o que ocorria na Palestina através do jornal alternativo Movimento. Porém, meu primeiro contato mais efetivo foi durante o massacre de Sabra e Chatila, ocorrido, em 1982, no Líbano. Li no jornal Tribuna da Luta Operária uma reportagem sobre o assassinato de palestinos em Beirute e aquilo me despertou interesse em entender melhor o que passava com os palestinos e sua luta de resistência contra a ocupação.
Panorama Real: Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre a Palestina?
Sayid Tenório: Eu sempre me interessei por temas internacionais e internacionalistas. E escrevia sobre a Questão Palestina, sobre o Sahara Ocidental, o Irã, e contra o sionismo. Alguns amigos sugeriram que eu reunisse aqueles artigos num livro. Mas eu preferi desenvolver uma pesquisa mais abrangente e escrever sobre a Palestina, trazendo esse assunto para o leitor brasileiro de todos os níveis, para que pudesse compreender em profundidade os eventos políticos e sociais que envolvem a Palestina e a luta de resistência do povo palestino ao longo dos anos. E para desconstruir a narrativa fantasiosa adotada pelos sionistas, como a “terra prometida”, “povo escolhido” e “terra sem povo para um povo sem terra”, comumente utilizadas para justificar o projeto colonial supremacista na Palestina. Por isso, o título do livro é ‘Palestina: Do mito da terra prometida à terra da resistência’. O livro também traz um histórico das lutas de resistência do povo palestino e seu enfrentamento às diversas tentativas de dominação da Palestina e da sagrada cidade de Jerusalém, durante os séculos. Uma luta heroica atualmente liderada pelo Movimento de Resistência Islâmica Hamas.
Panorama Real: Como tem sido a aceitação do seu livro sobre a Palestina?
Sayid Tenório: O livro é bem aceito por todos os segmentos que têm acesso. Tanto na academia quanto entre ativistas e leitores interessados em conhecer o tema da Palestina. O livro está na segunda edição. Na primeira, eu visitei várias cidades brasileiras, realizando o lançamento do livro, nos quais foram vendidos 1 mil exemplares. A segunda edição está na terceira reimpressão e já foram vendidos mais de 3 mil livros, nas atividades públicas de debates e lançamentos, e na loja virtual na Amazon.
Panorama Real: Como você vê a atual situação na Palestina? Acreditas na criação de um Estado palestino futuramente?
Sayid Tenório: A Palestina, no geral, e a Faixa de Gaza em particular, vivem um momento crucial. São mais de 600 dias de um processo de extermínio do povo palestino e de usurpação de suas terras por parte do regime sionista de Israel. Ao todo, se contarmos desde o Mandato Britânico na Palestina, que começou em 1917, é mais de um século de opressão e Apartheid. Eu não acredito na solução de dois Estados, pelo simples fato de que toda a Palestina está sob ocupação militar colonial de Israel. Penso que a solução de dois Estados é uma promessa que se mostrou irrealizável por décadas, que abriu caminho para a violação permanente dos direitos dos palestinos. Penso que a solução acabará sendo um único Estado democrático e laico em todo território da Palestina Histórica, por meio de um referendo com a participação de todos os habitantes da Palestina, incluindo judeus, muçulmanos e cristãos. A ocupação israelense foi derrotada moralmente, politicamente e militarmente em Gaza. Israel se meteu em uma guerra eterna em Gaza e não tem como sair. Israel virou um Estado pária, rejeitado inclusive pelos judeus em todo o mundo. Por outro lado, os palestinos e sua resistência estão firmes e não arredam o pé da sua terra ancestral, mesmo com toda a destruição e mais de 180 mil mártires e centenas de milhares de feridos e desaparecidos.
Panorama Real: Como ficará a região depois desse genocídio?
Sayid Tenório: Penso que o resultado desse “conflito” e do genocídio na Faixa de Gaza mudará o cenário geopolítico da região. A traição das dinastias árabe que deram as costas aos seus irmãos muçulmanos da Palestina, podem desencadear eventos históricos que mudem o cenário político naqueles países, com a mudança de poder e correlação de forças.
Panorama Real: Você tem sido perseguido por causa do apoio à Palestina a exemplo de outras pessoas que abordam esse tema. Como é essa perseguição? Por outro lado, tem recebido apoio?
Sayid Tenório: Por conta do meu ativismo nas redes sociais em favor dos palestinos, fui demitido do cargo que exercia na Câmara dos Deputados, processado internamente e perseguido pelos sionistas e bolsonaristas. Minhas contas foram canceladas nas redes sociais, sofri ameaças de mortes, de espancamento e vários eventos que participei foram atacados e outros cancelados, devido a minha participação. Recebi muitos apoios de movimentos e pessoas que apoiam a causa palestina e os direitos humanos. Mas, também, senti muitas ausências de pessoas que se acovardaram e não tiveram coragem de prestar solidariedade a um camarada, um companheiro e um amigo que estava sendo perseguido. O tempo dirá sobre isso. Não guardo mágoa e nem rancor em relação a essas pessoas. Faz parte da caminhada. Uns seguem lutando, outros abandonam e se acovardam, priorizando seus interesses individuais em detrimento das causas justas.
Panorama Real: Como analisa a atuação do governo Lula em relação ao genocídio na Palestina?
Sayid Tenório: O presidente Lula sempre teve uma posição clara de apoio aos palestinos. O Brasil reconheceu o Estado da Palestina em 2010, durante seu governo. Nessa fase do genocídio, Lula tem sido uma voz poderosa de denúncia dos crimes e do genocídio de Israel em Gaza. Mas, penso que o presidente precisa sair da retórica e tomar medidas concretas em relação a essa condenação. Ele tem força e apoio popular e internacional para isso. Falta coragem e determinação.
Panorama Real: Na sua avaliação o Brasil deveria romper com o regime sionista?
Sayid Tenório: Penso que o Brasil deveria fazer um gesto forte em relação aos crimes de Israel. O mínimo que deveria fazer seria expulsar o embaixador sionista no Brasil, que vive abertamente conspirando contra o Governo brasileiro. E cancelar os acordos militares, de segurança e inteligência com o regime genocida. E parar imediatamente de enviar de petróleo para Israel.
Panorama Real: Como vê a situação no Líbano, país que já visitastes várias vezes? Acreditas que a resistência popular esteja enfraquecida?
Sayid Tenório: A resistência libanesa confrontou com muita coragem, heroísmo e eficiência a ocupação israelense. Impôs muitas derrotas militares a Israel. O Hezbollah não atacou nenhuma área civil. No entanto, e como sempre, de maneira covarde e criminosa, Israel atacou várias áreas residenciais no Líbano, principalmente em Beirute, matando e ferindo milhares civis. E assassinando seletivamente vários líderes da resistência, entre eles o mártir Hassan Nasrallah, a quem os sionistas temiam pelas suas capacidades e liderança. Penso que a resistência libanesa teve que se retrair taticamente devido ao novo cenário, principalmente com a queda da Síria. Mas não foi derrotada e não está enfraquecida. O Hezbollah está enraizado na sociedade libanesa, tem muito apoio e seus combatentes são pessoas determinadas a lutar para libertar o Líbano e ao martírio.
Panorama Real: Como vê a situação na Síria após a queda do antigo regime?
Sayid Tenório: A derrubada de Bashar Al-Assad pelas forças terroristas do HTS (Haya Tahrir Sham), lideradas pelo chefão da Al-Qaeda, Al-Jolani (Ahmed Sharaa), foi uma ação coordenada por EUA, Israel e Turquia, que eram os principais financiadores do “estado islâmico”, juntamente com os Emirados Árabes. A Síria se transformou numa base dos planos estratégicos do imperialismo para a região. Não por acaso, todos os chefes da Europa o visitaram, se abraçaram e ofereceram apoio. Visitei a Síria em 2014, durante uma das fases mais agudas da guerra contra os terroristas do “estado islâmico” e os bandos associados. Fui como observador das eleições daquele ano, representando o Conselho Mundial da Paz, juntamente com a presidente do CMP, Socorro Gomes. Pude observar o apoio dos sírios ao presidente Bashar Al-Assad e o apoio aos esforços de guerra para derrotar a invasão terrorista. Bashar foi eleito por larga maioria, numa eleição limpa e legítima, com observadores de vários países e atestaram a lisura do pleito.
Panorama Real: Acreditas que o Irã e EUA chegarão a um acordo?
Sayid Tenório: Acredito que podem chegar a um bom acordo, porque o Irã tem demonstrado firmeza e soberania nas negociações. O Líder Khamenei tem dito que o Irã não precisa de autorização dos EUA nem da Europa, para enriquecer urânio e continuar com seu programa nuclear. E tem deixado claro que o objetivo não é ter uma bomba nuclear, mas usar essa tecnologia em benefício do povo iraniano. Acho que os EUA entenderam o recado, por isso continuam as negociações.
Panorama Real: Acreditas que Irã e EUA retomarão as relações diplomáticas?
Sayid Tenório: É possível, num momento que os EUA reconhecerem a soberania do Irã, que não vai se dobrar as ameaças de Donald Trump.
Panorama Real: Como foi sua conversão ao Islã?
Sayid Tenório: Eu nasci numa família de cristãos católicos, mas nunca fui praticante da fé cristã. Durante a juventude, passei a militar no Partido Comunista do Brasil e me tornei marxista-leninista. Ao estudar o Islã, a mensagem do Profeta Mohamed e os feitos da Revolução Islâmica do Irã, entendi que não havia contradição entre a ideologia marxista e o Islamismo. E decidi me reverter ao Islã.
Panorama Real: Como vê a situação dos muçulmanos no Brasil? Tem islamofobia?
Sayid Tenório: Os muçulmanos foram os primeiros a chegar no Brasil. Chegaram antes de Cabral. Vieram para realizar o trabalho de demarcação do Tratado de Tordesilhas, assinado entre Espanha e Portugal, em 7 de junho de 1494, ou seja, seis anos antes do “descobrimento” Brasil. A mais importante revolta antiescravista no Brasil foi comandada por muçulmanos, no ano de 1835, na Bahia, que ficou conhecida como Revolta dos Malês, porque na língua iorubá, Imalês é muçulmano. Embora minoritários, os muçulmanos brasileiros têm dado uma contribuição importante e significativa ao longo dos séculos para a formação cultural do Brasil.
Panorama Real: Na sua avaliação, há islamofobia no Brasil?
Sayid Tenório: O Brasil é um país islamofóbico. Os muçulmanos são os mais difamados e perseguidos, juntamente com nossos irmãos das religiões afro-brasileiras. E isso se intensificou principalmente com o crescimento das seitas pentecostais e neopentecostais, que são aliadas do sionismo. O Brasil é oficialmente um Estado Laico, desde a Constituição de 1947, através de uma emenda proposta pelo escritor comunista, Jorge Amado. Mas o que temos visto é a violação dessa claúsula constitucional, quando evangélicos querem tomar de assalto o Estado brasileiro, e se tornarem a religião oficial do Brasil.
Panorama Real: Fale um pouco da importância da revolta dos malês para o fim do regime escravocrata do Brasil?
Sayid Tenório: A Revolta dos Malês foi o acontecimento social, político e militar mais importante da história do Brasil, no enfrentamento ao escravismo, aos maus-tratos e a proibição dos cultos religiosos islâmicos e africanos. Provocou muitas mudanças no comércio de escravizados, nas relações sociais e políticas da época, mas, como sempre, ao custo de muitas vidas de lutadores. Lamentavelmente, a historiografia não dá a devida atenção a este episódio que reuniu cerca de 1 mil revoltosos na cidade de Salvador em janeiro de 1835, a maioria muçulmanos, lutando pelo fim da escravidão e pela liberdade religiosa no Brasil. Se fosse hoje, seria uma mobilização de mais de 60 mil pessoas.
Panorama Real: Por fim, como historiador, como vê a ascensão da extrema-direita em várias parte do mundo, em especial na Europa e na América do Sul. Qual é a melhor forma de conter essa expansão?
Sayid Tenório: O ressurgimento da extrema-direita no mundo é um fenômeno que diz respeito ao esgotamento dos regimes populistas e dos novos planos do imperialismo e do sionismo nos diversos países, em contraposição ao crescimento da corrente multipolar, representada pelos BRICS, que representam a maior parte da população e da economia do planeta. A forma de se contrapor a ascensão da direita no mundo, vem sendo feita pelo enfrentamento ao norte global imperialista e colonista, fracassado e em declínio, a mobilização popular e a contraposição do eixo da resistência, representado pelos países e forças que apoiam o povo palestino e todos os povos que lutam pela sua soberania e para se livrar dos resquícios do colonialismo na África, na América Latina e no Oriente Médio.